A pesca de cerco e
alar para terra em litorais arenosos e a pouca distância da praia é das mais
básicas, senão a mais básica forma de pesca no mar. A sua origem remonta às
civilizações Pré-Clássica e Clássica do Mar Mediterrâneo, que utilizavam barcos
pequenos e redes de alagem manual. Mais tarde, e durante a ocupação muçulmana
da Península Ibérica, esse tipo de rede utilizada na pesca marítima costeira
aparece com a designação de “Xábaka” e a sua expansão pela Andaluzia espanhola
e Algarve português originou novas expressões como “Jábega”, “Xávega” ou
“Enxávega”.
A pesca com xávega em
Portugal é originária do Algarve, e tanto a rede como a embarcação, muito plana
e muito peculiar, devem derivar da “Xábaka” islâmica e da “Jábega” andaluza. O
Barco-da-Xávega algarvio é muito parecido com a embarcação de Málaga, também
ela muito plana e sem forma de meia-lua.
No século XVIII na
região Norte e Centro de Portugal operou-se uma transformação nas formas de
pescar, com a introdução de um novo tipo de pesca, diferente das pequenas artes
(redes) designadas por “Chinchorros” que aí poderão ter existido, utilizando
uma grande rede de “cerco e alar para terra” e com a formação de companhas
munidas de barcos muito curvos, em forma de meia-lua, designados por
“Barcos-do-Mar” (de Espinho até Mira) ou “Barcos-da-Arte” (da Figueira da Foz
até à Vieira de Leiria), totalmente diferentes dos barcos que existiam no
Algarve e na Andaluzia, que não utilizam portos e são capazes de varar a
rebentação. Essa transformação no tipo de pesca nos litorais da Ria de Aveiro
teve uma grande influência catalã a partir da Galiza e foi feita
progressivamente de Norte para Sul. Ao novo tipo de pesca e à rede utilizada os
pescadores deram o nome de “Arte”. Assim surgiram as grandes companhas da
“Arte” e com elas o aparecimento de novas povoações no litoral norte e centro
de Portugal como foi o caso de Espinho e de um conjunto de praias até Vieira de
Leiria, estendendo-se a “Arte” à Costa da Caparica, Costa da Galé, Santo André
e Sines.
As diferenças entre
os dois tipos de pesca não se referem somente ao tipo de embarcação e às dimensões
dos aparelhos de pesca (cabos e rede), mas também à forma como a alagem era
efetuada. Nos mares do Algarve a alagem foi sempre feita de forma manual,
enquanto na “Arte” do norte e centro de Portugal, e devido às grandes dimensões
dos aparelhos de pesca, foram introduzidas as juntas de bois como auxiliares de
tração. Por outro lado, a “Xávega” algarvia tanto podia ser uma pesca de cerco
e alar para terra, como também uma pesca de cerco e alar para a embarcação
principal (Barco-da-Xávega), e em certas situações podendo ser ainda auxiliada
por outras embarcações como o “Calão” e a “Enviada”.
De acordo com o
Capitão-de Mar-e-Guerra António Baldaque da Silva na sua obra “O Estado Atual
das Pescas em Portugal” (1891) as comunidades piscatórias que praticavam a
pesca com a “Arte” de arrasto entre 1888 e 1891 estavam localizadas em
Lavadores, Granja, Espinho, Paramos, Esmoriz, Maceda, Furadouro, Torreira, São
Jacinto, Costa Nova, Areão, Palheiros de Mira, Tocha, Costinha, Quiaios, Praia
de Buarcos, Cova, Costa de Lavos, Leirosa, Pedrogão e Vieira de Leiria, até à
Nazaré. A Sul, Costa da Caparica, Costa da Galé, Santo André e Sines. No
Algarve, as comunidades de Salema, Lagos, Portimão, Armação de Pêra, Albufeira,
Faro, Fuzeta e com mais intensidade, Tavira e Monte Gordo, dedicavam-se à pesca
com “Xávega”.
No seguimento do
Inquérito Industrial de 1890 da “Comissão Permanente de Pescarias” e com a
posterior publicação em 1903 do “Regulamento Geral da Pesca da Sardinha nas
Costas de Portugal” surgiu a nova designação de “Arte-Xávega”, que através da
utilização do hífen unificou a “Arte” do Norte e Centro e da “Xávega” do
Algarve, numa única realidade oficial e legal e com uma malhagem mínima de 10
mm. Tratando-se de dois tipos de pesca parecidos entre si, designadamente por
serem ambos de “cerco e alar para terra” e muito diferentes de outros tipos de
pesca praticados em Portugal, não foi difícil a sistematização jurídica e
fiscal e a unificação das duas realidades.
Os séculos XIX e XX
foram, sem dúvida, os mais determinantes para o desenvolvimento e afirmação
deste tipo de pesca e da “Xávega” do Algarve. Se a “Arte” de Espinho a Vieira
de Leiria e na Costa da Caparica (deixando de utilizar os “Barcos-do-Mar”)
manteve-se bem viva, o mesmo não se pode dizer da “Xávega” algarvia que acabou
por se extinguir, acabando com a destruição nos anos 70 e 80 do século XX dos
últimos “Barcos-da-Xávega” existentes.
A
fixação permanente dos núcleos piscatórios
Foi a partir da segunda metade do
século XVIII e, sobretudo, a partir de 1776 com a chegada ao Furadouro de um
empresário chamado Jean Pierre Mijaule, natural de Languedoc, região do sul de
França, que se deu a fixação permanente de alguns núcleos piscatórios,
incluindo o de Espinho e a expansão e desenvolvimento da pesca de cerco e alar
para terra, com redes de grandes dimensões e com barcos em forma de meia-lua.
Assim, as “Artes Grandes” começaram no Furadouro com a instalação por Mijaule
de um armazém ou fábrica, que ficou conhecida por “fábrica do estrangeiro”, a
qual se dedicava à recolha e conserva da sardinha pelo processo de salga ou
salmoura. Na fábrica trabalhavam técnicos catalães especializados nas
tecnologias das redes, da salga do peixe, e da nova organização das companhas,
com pessoal de pesca português. Os empresários de pesca catalães na primeira
metade do século XVIII já estavam instalados na Galiza e operavam a partir daí
e posteriormente introduziram em Portugal as “Artes” ou as grandes redes de
pesca, que apresentavam diferenças significativas em relação às pequenas redes
chamadas de “Chinchorros” utilizadas a partir do século XVII: redes de maior
dimensão lançadas a distâncias muito superiores. A iniciativa de Mijaule
mostrou-se extremamente rentável, já que os excedentes destinados à agricultura
eram comprados a preços mais baixos e conservados em salmoura, esperando novas
oportunidades de comercialização, que aconteciam quando as condições marítimas
não permitiam a pesca. Por outro lado, o “segredo do francês” refletiu-se nos
processos de pesca, no sentido em que permitia a recolha de um volume muito
maior de peixe.
O povoamento de
Espinho teve a sua origem num vasto areal denominado “Espinho-Mar”, muito perto
de “Espinho-Terra”, pequena aldeia que se situava a nordeste dessa praia e
constituía em meados do século XVIII o Lugar de Espinho, freguesia de S. Félix
da Marinha. Ainda que já se pescasse neste ponto da Costa, só com a chegada das
gentes de Ovar é que foi conferida à pesca o carácter profissional da
atividade. Devido às condições naturais da praia, a utilização da Arte e dos Barcos-do-Mar já se faziam
sentir. A praia possuía um vasto areal com formação dunal, abundância de peixe,
e a sua proximidade com a Ria de Aveiro atraiu os primeiros pescadores oriundos
do Furadouro. É de salientar que o povoamento dos litorais e estuários,
principalmente do Norte e Centro de Portugal, ficou a dever-se ao dinamismo das
populações piscatórias e agro-marítimas dos litorais da Ria de Aveiro.
Os pescadores que, do
sul, vieram e aqui se instalaram, estabeleceram a praia de pesca num local que
estava situado em frente à atual Piscina Solário Atlântico, erguendo os seus
palheiros nos terrenos do Rio Largo, fronteiros ao primitivo Lugar de Espinho.
A atividade piscatória teve, de início, carácter sazonal e estava confinada aos
meses de Maio a Novembro, regressando os pescadores ao Furadouro no início do
Inverno. A primitiva colónia não construiu na praia de Espinho abarracamentos
ou palheiros, fazendo uso das suas embarcações, voltadas de fundo para o ar, de
abrigos. Só mais tarde é que começaram a erguer barracas de madeira, conhecidas
em todo o litoral como “palheiros”, que ficavam desertos quando os pescadores
regressavam às terras de origem. Até 1855 a Costa de Espinho pertenceu à
freguesia de Ovar, passando por Decreto-Lei de 24 de Outubro desse ano a fazer
parte da freguesia de Anta, concelho da Feira, onde se manteve até 23 de Maio
de 1889, data da criação da Paróquia de Espinho e posteriormente da freguesia
civil.
Em 1908, o escritor
Miguel de Unamuno, na sua obra “Por terras de Portugal e da Espanha”,
caraterizou da seguinte forma a localização de “Espinho-Mar”: “O sol a morrer
nas águas eternas e os peixes na areia, os homens a mercar a sua colheita
marinha, o mar a cantar o seu perpétuo fado,
os bois a ruminar lentamente sob as cangas ornamentadas e, ao longe, as copas
escuras dos pinheiros começando a diluir-se no céu da tarde extrema. E junto
aos pinheiros, na costa, uns quantos moinhos de vento, sobreviventes também de
uma espécie industrial que principia a ser fóssil, a mover lenta e tristemente
os seus quatro braços de pano.” No século XIX e inícios do século XX, junto à
costa e a norte da atual Piscina Solário Atlântico, existiam vários moinhos de
vento que se estendiam pelas praias da Granja e Aguda e, também, junto à
Ribeira do Mocho onde hoje se situa o Parque de Campismo de Espinho.
A pesca com Arte-Xávega
A Arte-Xávega é um
tipo de pesca tradicional que consiste na utilização de uma rede de cerco
envolvente que é lançada ao mar e depois é puxada para terra. A “Arte”, como é
designado o conjunto constituído por cordas, alares e saco, é largada de bordo
de uma embarcação que deixa um dos cabos de alagem na praia e que, após o
lançamento da rede, regressa à praia trazendo o outro cabo de alagem. Depois de
ambos os cabos estarem na praia dá-se início a alagem, nos primórdios feita à
mão, posteriormente com tração animal e actualmente por tração mecânica, com recurso
a tratores a motor.
Um dia de
pesca é composto por um número variável de lanços,
que dependem do estado do mar, da capacidade de trabalho da companha, da
quantidade e qualidade do peixe capturado nos lanços anteriores. A decisão da realização de um número de lanços por jornada é da competência do
Arrais de mar.
Cada lanço inicia-se com a entrada do barco
na água, tarefa efetuada com a ajuda de um trator que reboca a embarcação e de
toda a companha que empurra manualmente o barco até ele começar a flutuar. A
rebentação é vencida à força de remos e o motor só é acionado quando existir profundidade
suficiente. A Arte é largada de bordo
do Barco de Mar, ficando um dos cabos de alagem na praia, cuja ponta é o
extremo de uma das mangas, o chamado “reçoeiro”. Após o lançamento da rede no
“largadouro”, a embarcação regressa à praia trazendo o outro cabo de alagem,
que por sua vez traz consigo a arte “inteira”, com o “saco”, uma das “mangas”,
e a ponta de um dos cabos, a designada “mão-de-barca”, que será lançada no mar
em semicírculo. Só depois de ambos os cabos estarem de novo na praia é que se
dá início à “alagem”.
O escritor espanhol
Miguel de Unamuno, que passou por Espinho nas duas primeiras décadas do século
XX, escreveu a obra “Por Terras de Portugal e da Espanha” na qual descreve
magistralmente o que era a pesca em Espinho no limiar do século XX, texto de
que vamos fazendo referência no decurso deste caderno.
“Deixam
presa na areia a ponta de uma das duas cordas da rede. Em cada barca sobem uns
trinta tripulantes, meia dúzia para estender a rede e demais tarefas, e dez ou
doze para cada um dos grandes remos. Três horas depois de ter saído, voltam
trazendo a ponta da outra corda. E é um espectáculo emocionante, e às vezes
solene, ver as barcas de proa levantada esperar, com o pescoço erguido, as
ondas que lhes sejam favoráveis e investir depois para a areia entre cascatas
de espuma e a gritaria dos que as esperam.” (Miguel de Unamuno, A Pesca de Espinho, Agosto de 1908.)
“No barco
o saco vai ao bico da ré, alongando-se sobre a corda e as mangas vão no
interior do barco, e no início da rede colocavam-se as calas. As redes mediam
entre 240 a 350 metros e o saco chegava a ultrapassar os 50 metros.”
A rede opera quase à
superfície do mar e tem os “panos” das suas duas “mangas” laterais posicionados
verticalmente devido ao efeito conjugado da “tralha das pandas” e da “tralha
dos chumbos”, os designados “pandulhos”. A malha dos “panos” das “mangas” vai
estreitando de forma progressiva. Dos dois lados do aparelho, as duas mangas
vão aumentando em altura, enquanto a malhagem vai estreitando. À medida que a
alagem é efetuada as duas mangas aproximam-se uma da outra; as pontas
aproximam-se do “reçoeiro” e da “mão-de-barca”. Assim, ao diminuir a distância
na praia entre os cabos de alagem, as mangas vão se fechando e o peixe vai
sendo encaminhado para o saco. Já no saco, o peixe capturado não pode sair mais
e assim chega à praia. O saco é reforçado a meio por uma rede de malha mais
grossa, chamada funda, para evitar a
sua rutura quando a pesca é mais abundante.
“As mangas, que
constituem as partes laterais da rede, tinham cinco peças designadas de
alcanena, caçarete, regalo, mezena e claro. Terminavam no calão onde eram
fixadas as cordas.”
Em terra o saco, de
rede de malha mais fina, é arrastado pelo trator e aberto, procedendo-se à
escolha e separação do peixe, já não em “lotas” e “macolas” na areia da praia e
transportado em rapichéis ou redanhos (sacos
grandes de rede que os pescadores dependuravam num bordão de madeira e o
transportavam até ao local de venda, podendo conter duas ou três macolas) como faziam as
antigas companhas, mas contado e colocado em caixas, que depois são
transportadas pelos tratores para fora da praia, fazendo-se a vendagem na zona
próxima dos apoios de pesca.
“Metem-se alguns
homens nessa massa palpitante, mergulhando nela os pés bronzeados, e às
pazadas, separando aqui e além alguns peixes, vão enchendo os rapichéis ou redanhos, espécie de cestos de rede em que dois homens para cada um
deles levam a colheita para a estender na areia, onde as mulheres fazem a
escolha.” (Miguel de Unamuno, A Pesca de
Espinho, Agosto de 1908.)
“Os antigos sacos
eram formados por painéis como oito muros separados entre si e conhecidos por
cuada, meia cuada, alegras, bastos, meios-bastos, cuada rasa, bocada rara e
folhas de boca. Numa das suas extremidades prendia-se o calimbo, flutuador que
evitava que o saco descesse em demasia, servindo também para detetar a posição
do saco.”
Na atualidade a malha
da rede tem 7 muros de 20, 22, 24, 26, 28, 30 e 32 mm e o saco de 50 metros
começa com malha de 24 mm e termina em 10 mm. No “cú” do saco utiliza-se uma
malha de 20 mm. Os acessórios que compõem a rede são os seguintes: chumbos;
cortiça; cabos; boias de sinalização (balizas).
Depois de o saco
ficar vazio, é colocado junto à popa da embarcação e o seu fundo é fechado.
Quando a rede e as cordas estiverem devidamente arrumadas, o Barco está
novamente pronto para ir ao mar, iniciando-se um novo lanço. Os lanços são
feitos a uma distância da praia que varia em função das ordens dos arrais, variando entre os 3000 e os 500
metros. Pela Lei as artes podem ser
lançadas até 3000 metros, distância que em Espinho não é utilizada, andando a
média dos lanços entre os 1000 e os
2000 metros. A prática comum a todas as companhas é de fazerem o cerco a
maiores distâncias durante ao dia (desde a alta madrugada até ao início da
tarde) e a pequenas distâncias à medida que o entardecer e a noite se aproximam.
“Quando as juntas de
bois iniciavam o trabalho da alagem das redes emergia a figura do calador, que
harmoniosamente procedia ao enrolar das cordas colocando-a em rolos. As cordas
são fabricadas de matéria vegetal fibrosa do sisal e transformadas em grosso
cabo. Cada rolo de corda tem 60 metros de comprimento, podendo ser lançados 35
rolos de forma a consumar 2500 a 3000 metros de distância.”
“Puxam da praia com
junta de bois. Isto de tirar as redes com juntas de bois é o que dá mais
carácter à pesca em Espinho, assemelhando-se a um trabalho agrícola e
concedendo um pretexto à imaginação para comparar com o trabalho dos campos
nesta região em que, como digo, o mar parece que se ruraliza.” (Miguel de Unamuno,
A Pesca de Espinho, Agosto de 1908.)
Também Raul Brandão
na sua obra “Os Pescadores”, editada pela primeira vez em 1923, fala da prática
da Arte-Xávega na Praia de Paramos e do viver da comunidade piscatória: “Aqui o
pescador vive em barracas de madeira que têm o aspecto de povoações lacustres.
Em certos dias iça-se o camaroeiro e a este sinal, esperado no interior das
terras, começam a aparecer pelos caminhos empapados, dirigindo-se para o mar,
as pesadas juntas de bois levadas à soga pelas moças. O lavrador associa-se ao
homem do mar. Nesses dias larga o arado e toma parte na companha, ajudando a
alar a grande rede que se usa por estas bandas e que as bateiras lançam à
água.”
Para além do conjunto
de procedimentos técnicos relacionados com a prática da Arte e dos meios indispensáveis para a sua concretização
(embarcações, aparelhos de pesca, máquinas e outros apetrechos), o pescador de
Espinho é um homem experiente e de saber que conhece bem o mar e os seus
recursos. A costa de Espinho é um património natural rico em várias espécies
que sazonalmente migram para esta zona, de águas frias, e rica em plâncton.
Falamos de uma zona costeira adjacente à Ria de Aveiro, tipicamente considerada
zona de recrutamento de sardinha e de outras espécies pelágicas como o carapau,
a cavala (que em conjunto com a sardinha são as espécies dominantes) e o
biqueirão, registando-se também a presença de faneca, sarda e boga, entre
outros peixes.
Os conhecimentos
empíricos e os saberes dos pescadores transmitidos de geração em geração,
permitem aos homens do mar interpretar as condições meteorológicas mais
favoráveis à pesca, os ventos e as ondas (detetar a existência de fundos de
areia, fundões ou cabeços, essencial para uma alagem sem problemas de maior).
O “Barco-do-Mar”
A arqueologia naval
considera que o barco do mar, as bateiras de pesca, e os barcos moliceiros da
Ria de Aveiro, pertencem todos à mesma família de embarcações: a das canoas de
tábuas, em forma de meia-lua.
A tese mesopotâmica,
defendida por Adolfo Schulten, a partir das pinturas de Hagia Txiada e do
modelo de prata do túmulo de A-bargit do museu de Ur, atual Iraque, é a que tem
mais consistência. Nesse sentido, o barco de Ur é aquele que mais se aproxima
dos modelos atuais do barco-do-mar e da bateira de mar.
Na sua construção
nota-se a influência direta do tipo de mar (Atlântico), da rebentação e da
violência das ondas, da praia arenosa, da agilidade das manobras e sua
tripulação, das artes e das espécies a capturar.
A partir dos anos 80
do século XX, com a motorização dos barcos, do abandono do arrasto por juntas
de bois e com o uso da tração mecânica, foram introduzidas novas modificações,
as quais permitiram aumentar o número de lanços diários.
“Nesta parte da costa
portuguesa, junto ao lavrador vive o pescador. Aquele semeia o linho e faz as
cordas das redes com que este pesca, fornece-lhe madeira para os seus barcos.
Aqui, nas areias desta praia de Espinho, vêem-se a descansar, de proa voltada
para o mar, os barcos dos pescadores. Recordam-me o que deveriam ser as naves
que os aqueus arribaram a Tróia, as naves homéricas. São, de facto, como exemplares
sobreviventes de uma espécie já extinta em outras partes. Têm, com efeito, algo
primitivo estas barcas sem quilha, fundo plano como o das chalandras, com a
proa em ponta como a das gôndolas, e nela uma cruz a rematar.” (Miguel de
Unamuno, A Pesca de Espinho, Agosto
de 1908.)
Segundo Manuel
Fidalgo na sua obra “Barco da Xávega – Tecnologia da sua Construção”, 2000, a
motorização de um barco-do-mar exigiu um motor diferente dos motores usuais e
um rombo à ré para o encaixar sem o perigo de a água entrar. Os barcos do mar
de 10 metros têm praticamente tudo o que os antigos barcos do mar de 16,45 m
possuíam, com a exceção das alterações seguintes:
A ré é a parte do
barco onde é exercido um maior esforço, razão pela qual vários construtores
substituíram a roda da ré de pinho por uma roda de carvalho. O motor a gasolina
ou gasóleo, é encaixado entre a 2.ª caverna e o forcado da ré. Os remos no
barco a motor assentam em labaças, que dão mais liberdade de ação para o
manejamento da rede, a qual não ultrapassa os 600 metros (mangas de 300 metros
e saco com aproximadamente 50 metros). No passado, de tripulações de 34 homens
no barco de dois remos passou-se para 8 a 12 homens. Os barcos de quatro remos
e de 44 a 56 tripulantes desapareceram e nunca tiveram grande expressão na
“Arte” no concelho de Espinho, bem como os “postos fixos a bordo com remadores
sentados e camboeiros (de pé) no remo “maião” e no remo de proa. Na atualidade
vão três homens em cada remo, dois como remadores e um como “camboeiro”, e dois
ou mais homens para lançar a rede, um junto ao motor e um outro junto à proa.
Nos inícios do século XX em cada remo trabalhavam dez homens, quatro sentados
nos trastes ou bancos (os chamados metedores), quatro homens de pé e dois aos
cambões (pequeno cabo atado ao punho do remo). O Caneiro, era o remador que ia
agarrado ao cano (punho do remo), e o Espiador o remador que ia de pé. O arrais
de mar, figura que dirige os trabalhos no mar, inclusive o lançamento da rede,
ia colocado no “paneiro pequeno”.
COMPOSIÇÃO DO BARCO DO MAR
|
PROA
|
RÉ
|
PROA | RÉ
|
COSTADO
|
REMOS
|
Cavernil
|
Bico
da Ré
|
Abraçadeiras
|
Chumaceiras
|
Cano
|
Coberta
|
Calço
p/rede
|
Costado
|
Escalamões
|
Pá
|
Gurfiões
|
Desc.
da forcada
|
Cinto
|
Remo
Proa
|
Cágado
|
Arco
da Proa
|
Armela
|
Ferros
da Boca
|
Remo
Ré
|
Tarma
|
Paneiro
|
|
Dragas
|
|
Arreatamento
|
Forramentos
|
|
|
|
Tostas
|
A
cadeia operatória de construção do Barco-do-Mar
A especificidade da Arte-Xávega
enquanto tipo de pesca artesanal resulta da lide do barco e da rede como
elementos materiais. O barco é elaborado pelos poucos mestres carpinteiros que
ainda se dedicam a estas construções, concentrados em Mira e Pardilhó, duas
terras situadas no Distrito de Aveiro.
A obra “Barco Xávega
– Tecnologia da sua construção” de Manuel Fidalgo descreve com pormenor todas
as fases de construção do Barco-do-Mar, uma embarcação que não tem leme, e que
é orientada por remos, e está preparado para fazer até 5 viagens por dia. É
utilizado por uma companha constituída por 8 a 12 homens. Estes barcos são
utilizados essencialmente no verão e outono, indo ao mar raramente durante os
meses de inverno.
A construção deste
barco é uma cadeia operatória constituída por 18 fases. Contudo, esta cadeia
foi revista com a motorização do barco. O motor necessário para este barco era
diferente dos utilizados até então, foi necessário um rombo até à ré para o
encaixar sem existir risco da água entrar. Este motor é a gasolina ou gasóleo e
debita de 40 a 60 HP. Os remos do barco são assentes em labaças, colocados
perto da proa de modo a deixar mais espaço livre para manear a rede.
Os estaleiros onde
estes barcos são construídos mudaram-se de junto à praia para locais onde
existisse a matéria-prima necessária para a construção dos barcos, isto é, a
madeira. Cada barco demora cerca de um mês a ser construído sem a pintura.
O barco é feito de
pinheiro bravo ou manso e alguns construtores utilizam ainda o carvalho para a
roda da ré. O pinheiro bravo é fundamental para as tábuas de fora e do fundo do
barco. As árvores de onde esta madeira é retirada devem ter, pelo menos 3 mil
quilos, e devem possibilitar tirar tábuas de, pelo menos, 10 metros. São também
feitas de pinheiro bravo a roda da proa, o forcado da proa, o forcado da ré e
os bancos.
De pinheiro manso são
feitas as 16 cavernas e a roda da popa para os que não utilizam o carvalho. O
pinheiro manso é escolhido quanto mais tortas forem as suas raízes e o tronco,
este deve ter, pelo menos, 2 mil quilos. Do tronco do pinheiro são feitas as dragas,
os bordos, as falcas, entre outras peças mais pequenas.
Num barco de 10
metros são necessárias 7 estacas de eucalipto para assentar a tábua da quilha e
dos fundos. Estas têm comprimentos diferentes e são cortadas com base no “pau
de pontos”, instrumento primordial na sua construção. São adicionadas ainda
pequenas ripas ou tábuas para auxiliar esta construção. O comprimento do barco
é que vai determinar a sua largura e a quantidade de estacas necessárias, como
as suas dimensões e a distância entre estas e o tesado do barco. As tábuas da
quilha e do fundo devem ser resistentes e ter a espessura necessária para
suportarem dez anos de desgaste e corrosão. A utilização da chapa metálica para
cobrir o fundo do barco não tem sido uma boa opção porque a areia que se
acumula entre o metal e a madeira diminui a duração de vida do casco.
«Um dos instrumentos mais importantes na
construção de um barco Xávega é o “pau de pontos”, um aparelho, que substitui o
metro ou a fita métrica, sendo que todos os componentes do barco têm
obrigatoriamente de obedecer ao pau de pontos. Usualmente, um pau de pontos
consiste numa vara de metro e meio, de quatro faces iguais, aplainada, com
cortes, ou ranhuras quase imperceptíveis em todos os lados e a alturas
diferentes de leitura só acessível aos carpinteiros navais da mesma arte.
Associados, às ranhuras, há traços a lápis, com (ou sem) números, que também
entram na medição das peças a construir.»
As tábuas da quilha e
de aresta devem ter 10 metros de comprimento e 5 ou mais centímetros de
espessura. Nas tábuas é exercida uma forte tensão de modo a estas atingirem a
curvatura necessária, isto é feito com base no macaco, grampos e gatas. Aqui é
necessário um elevado esforço físico. As dimensões das três cavernas da proa
não são iguais às três da ré e as do meio são todas diferentes. Para a
realização das cavernas é necessário limpar o pinheiro e as raízes,
desmancha-las com a motosserra, fazer a medição com o pau de pontos e cortar e
afarizar até esta estar concluída. Quando as 16 cavernas estiverem concluídas,
a roda da proa e a da ré, os forcados e os braços também já devem estar
operacionais para de seguida o Mestre dar início à construção, pregando as
cavernas da proa e da ré à tábua da quilha e às tábuas do fundo, e posteriormente
as cavernas do meio, os braços e a roda da quilha e da ré.
Após essa operação
vão ser pregadas às cavernas as primeiras tábuas do lado, as tábuas de
verdegar. Depois o foliamento que é uma tábua de bico que se prega às cavernas
e ao bico da proa e à roda da ré.
No final deste
processo é necessário revestir o barco com tábua com as medidas dadas pelo pau
de pontos. Primeiramente são pregadas as tábuas dos bordos, de seguida a capa
da proa, as tábuas de fechar e as entre-dois.
É necessário dragar o
barco, isto é, pregar as tábuas de dentro, assentar os bancos e a tábua
entre-dois do fundo. A draga é colocada acima das tábuas dos lados e dos
foliamentos e abaixo das tábuas de forro. Para uma embarcação de 10 metros a
draga deve ter 7,5 metros por 25 centímetros de largura e 3 centímetros de
espessura. O banco de remar possui duas partes, o banco e o grosso.
De seguida são presos
os forros, isto é, duas tábuas que se prendem às cavernas acima das dragas.
Estes têm 8 metros de comprimento, 16 centímetros de largura e 2,5 de
espessura. É aqui que são presas as labaças ou remadouros de metal onde irão
depois assentar os remos.
O passo seguinte é
pregar as labaças e a capa da proa que serve para tapar os últimos buracos
desta. Ao assentamento das últimas tábuas dá-se o nome de fechar o barco. Este
fica pronto para a calafetagem e para pintura. Em seguida é aberto o buraco
onde irá encaixar o motor e é feita a calafetagem. As zonas calafetadas são
enchidas por breu. As ferragens utilizadas no barco são os pregos e as cavilhas
de ferro e madeira. Por fim, o barco é pintado, por norma de três cores à
escolha, o branco deve estar sempre presente nos costados, na proa e na ré. Os
barcos possuem símbolos relativos à companha a que pertencem.
Os remos são feitos
de eucalipto e servem para equilibrar o barco quando as ondas são de maior
dimensão. Servem, também, para substituir o motor quando falha. O remo tem 8,4
metros, tendo a pá menos de 20 centímetros.
Construído o
barco-do-mar e antes de começar a operar era necessário proceder à sua bênção e
para esse feito, e para além do Padre da freguesia que se deslocava à praia e
dentro do barco fazia a pequena cerimónia religiosa da bênção, era escolhida
uma jovem de famílias de pescadores como madrinha da embarcação.
O
Pescado
Ao longo da
história da Arte-Xávega em Espinho e de entre as espécies mais capturadas destacam-se o
carapau, a cavala e a sardinha. Antes da construção do Porto de Leixões, em
finais do século XIX, para além da sardinha, que era abundante, também se
pescavam corvinas, pescadas e robalos. Em período mais recente, espécies como o
caranguejo, dourada, faneca, linguado, lula, raia, robalo, ruivo e biqueirão
também fazem parte do leque do pescado que vem no arrasto das redes.
O carapau, de nome
científico Trachurus trachurus é a designação vulgar de várias
espécies de peixes das famílias Scombridae e Carangidae, caracterizados por um
corpo fusiforme, uma linha lateral terminada por escamas em forma de escudo, e
uma camada de músculo vermelho na parte lateral do corpo. São peixes pelágicos
que formam por vezes grandes populações, com um grande valor nutritivo. Os
adultos formam cardumes, que só se aproximam da costa na Primavera e no Verão
para desovarem. Os mais pequenos, vulgarmente conhecidos por “jaquinzinhos”,
abrigam-se entre os tentáculos das medusas. O trachurus, é o género que habita a costa portuguesa.
A cavala, Scomber japonicus, existe
em grandes quantidades nas nossas águas, no entanto, só quando o tempo começa a
aquecer e o mar se encontra mais calmo é que pode ser pescada. Passa a maior
parte do Inverno no Mar do Norte, a consideráveis profundidades, período no
qual não se alimenta. Com a Primavera chega o tempo da desova, que nas nossas
águas é de Março a Abril. É no Verão que se fazem as grandes pescarias deste peixe.
A cavala mede cerca de 85 cm de comprimento, cabeça e o dorso azulados, flancos
com pequenas manchas e ventre esbranquiçado.
A sardinha, Sardina pilchardus, é um dos mais
importantes recursos pesqueiros portugueses, tanto em termos económicos como sociais.
Com uma vida curta (7/8 anos), tem um regime de exploração intenso. Apesar das
flutuações anuais, a época de reprodução inicia-se no Outono (Setembro/Outubro)
e termina na Primavera (Março/Abril). A safra realiza-se entre os meses de Maio
a Setembro.
O comprimento da
cabeça é sensivelmente idêntico à altura do corpo. A boca estende-se até cerca
do terço anterior do globo ocular. Caracterizam-se por possuírem apenas uma barbatana dorsal sem espinhos, ausência de espinhos na barbatana anal barbatana caudal bifurcada e boca sem dentes e de maxila curta, com as escamas ventrais em forma de escudo. Cor azulada no
dorso e prateada no ventre. Pode atingir cerca de 30 cm de comprimento.
Pelágica, mantendo-se entre os 25 e os 30 m de profundidade durante o dia e
entre os 15 m e os 35 m durante a noite.
Foi uma espécie
essencial para o estabelecimento em Espinho da indústria conserveira em finais
do século XIX. A Sardinha foi a “rainha” das conservas Brandão, Gomes & C.ª
e contribuiu para o aumento e fixação do número de companhas nesta Costa, que
forneciam diretamente a unidade fabril.
“Parte da pesca vai
para a fábrica de conservas, e vemo-los ali a tirar as cabeças e a amanhar as
sardinhas, cujos sangrentos despojos ficam na areia para as gaivotas, outra
parte vai para a venda a retalho e uma parte maior em carros celtas para
estrume dos campos.” (Miguel de Unamuno, A
Pesca de Espinho, Agosto de 1908.)
A
Mugiganga
Este tipo de pesca
empregava menos meios e geria menores rendimentos, utilizando-se para o efeito
pequenos barcos – as bateiras –, que se dedicavam à captura de outras espécies,
como o camarão, fanecas pequenas, e o caranguejo, produto utilizado pelos
lavradores como fertilizante (adubo) para as terras.
“Os caranguejos não
têm outro destino. E aqueles mesmos boizinhos ruivos, de longa e aberta
cornadura, que puxaram a rede, levam para os campos, nuns carrinhos do mais
antigo tipo, nuns carrinhos celtas, de rodas maciças, fazendo uma só peça com o
eixo, e com duas aberturas para os aliviar do peso, o estrume extraído do mar.”
(Miguel de Unamuno, A Pesca de Espinho,
Agosto de 1908.)
A pesca do caranguejo
em pequenos cardumes, o tradicional “pilado” ou “mexoalho”, procurava libertar
os bancos arenosos deste crustáceo que afugentava os cardumes de sardinha.
Neste sistema de pesca era utilizada uma rede de arrasto de algodão (4 a 5
metros de altura e 15 a 20 metros de comprimento), de menores dimensões que a
da arte-xávega, designada por “mugiganga”.
Esta rede era
constituída por um saco de sete a nove metros de comprimento, com uma malha
guarnecida por tralhas de cortiça e pandulhos. O saco de malha miúda (18 mm)
composto por fisgas e ganchos, terminava no pau de calão, a partir do qual se
fixavam os cabos de arrastar. Mais tarde, este tipo de aparelho utilizava bóias
na parte superior e os “bolos”, pesos redondos e chatos, com dois furos, feitos
de barro ou cimento, colocados na parte inferior da rede.
Chegados ao lugar do
pescado, sondavam a “profundidade do mar e a natureza do solo com a sonda de
mão constituída por um cordel, com a marca das braças, chamado fieira, que
tinha preso na extremidade mergulhadora um quilo de chumbo em tronco de cone,
côncavo na sua porção inferior, a que davam o nome de chumbeira. A concavidade
era cheia com sebo duro, geralmente velas de sebo de Holanda.”
“A aderência de areia
fina ou lodo ao sebo, indicava a possibilidade de existirem linguados, azevias,
marmotas, alguns ruivos, chocos caranguejos, etc.; a aderência de areão e
pequenos calhaus ou marcas das pedras, indicava a existência de fanecas, cação,
etc. Reconhecida a existência de peixe num determinado lugar do fundo do mar,
os pescadores fundeavam a bateira com um ferro chamado fateixa, preso a uma
corda de espessura média.” (Agostinho Faria Isidoro – A Mugiganga. In “Os Sabeler – uma família de pescadores”. Porto:
Instituto de Antropologia Dr. Mendes Correia, n.º 19, 1978.)
Era uma arte de
arrastar pelo fundo e de alar para bordo à mão, de manuseamento complicado,
exigindo uma tripulação composta por quatro a cinco homens das companhas,
treinados para trabalhar com este tipo de aparelho. Os homens dirigiam-se para
zonas pouco distantes da praia (sublitoral) e pescavam a uma profundidade
reduzida. A expressão andar à barga era, em tempos mais recuados, utilizada
para designar este sistema de pesca.
Os
atuais “caícos” a motor, pequenas embarcações mais recentes nas praias que
praticam a arte-xávega, são utilizados na “mugiganga”, para a pesca de pequenas
espécies como o camarão, a faneca e o robalo. No passado eram utilizadas as “bateiras”,
embarcação de 5 a 7 metros de comprimento, de fundo chato e dois bicos. Possuíam
um pequeno coberto para guardar roupa e pequenos objetos.
As
Companhas
Durante muito tempo,
a Arte-Xávega foi um agrupamento de pescadores sujeito a usos e costumes
tradicionais sob a chefia de um governo ou patrão, dedicando-se à faina do mar,
e que tomou, no decorrer do tempo, vários nomes: chinchorro, companhia,
companha, e sociedade de pesca. Um processo de pesca artesanal que designava
uma agremiação formada por sociedades com capitais coletivos ou individuais.
Numa companha
tradicional os homens dividiam-se em dois grupos: os “homens do mar”, isto é,
os remadores que conduziam o barco para o “largadouro” onde era lançada a rede;
os “homens de terra” que se encarregavam dos “aparelhos”, isto é, das redes e
das cordas. A tripulação de um barco do mar dependeu sempre diretamente da sua
dimensão. Os de maior dimensão podiam albergar 60 homens, distribuídos por
terra (24) e por mar (36). Com o passar dos anos este número foi diminuindo, e
na atualidade uma companha é constituída por cerca de 8 a 12 homens.
À frente dos homens
de mar está a figura do “Arrais de Mar” o mestre supremo de toda a companha.
Comanda a navegação e dá ordem para o lançamento das redes. É o homem escolhido
pela sociedade patronal para governar a companha; a figura do mestre a que
todos obedecem e respeitam. Tem como seu “súbdito” o Arrais de Terra a quem
transmite ordens. Hoje em dia tanto os homens que vão no barco como os que
trabalham em terra são designados de pescadores, mas no passado as funções de
cada homem de mar e de terra estavam bem delineadas como podemos verificar nos
quadros seguintes. Em terra também se destacava a figura do redeiro, aquele
pescador que detinha o saber da confeção das redes e do seu conserto.
HOMENS DE MAR
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DESIGNAÇÃO
|
FUNÇÃO
|
Metedor
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Remava no meio do remo
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Caneiro
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Remava na extremidade do remo
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Calador
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Lançava as redes ao mar
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Reveseiro
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Substituía os colegas
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Espiador
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Puxava as cordas dos cambões do remo
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Camboeiro
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Puxava a corda amarrada ao remo
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Proeiro
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Evitava que o barco ficasse atravessado
|
Maião
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Remava no remo dianteiro
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Requinteiro
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Remava sentado nos extremos do bordo
|
Vareiro de Proa
|
Assegurava a entrada do barco de mar em segurança.
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HOMENS DE TERRA
|
DESIGNAÇÃO
|
FUNÇÃO
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Arrais de Terra
|
Coordenava a limpeza, cordas e a
aparelhagem do barco
|
Redeiro
|
Confecionava e consertava a redes
|
Carpinteiro
|
Consertava as avarias do barco e remos
|
Colhedor
|
Colhia as cordas
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Guarda
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Zelava pelos apetrechos do barco
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Gerente
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Patrão da companha
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Escrivão
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Fazia a contabilidade da empresa
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Calafate
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Vedava o casco do barco
|
Amarrador
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Amarrava o tramelho do gado
|
Guarda de noite
|
Guardava os apetrechos durante a noite
|
Chamador
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Chamava os pescadores para a faina
|
Ajudante de arrais
|
Dava apoio ao arrais de terra
|
Vareiro de terra
|
Tratava dos bordões e do varal
|
O
“Chamador”, pelo uso de instrumentos de comunicação primitivos, era outra das
figuras que se destacava dentro dos “homens de terra”. Primitivamente os sons
emitidos por ele eram efetuados através de um búzio de mar ou de um corno de
bovino. O instrumento acústico do “chamador” da companha exigia maior esforço
no sopro, para que o som reproduzido fosse ouvido o mais distante possível.
Mais tarde, passou a estar acompanhado da sua “buzina” de chapa
de flandres e de forma cónica. Era o primeiro homem da Companha a despertar. A
sua principal tarefa consistia em avisar o arrais e todos os seus camaradas que
o mar estava favorável para a faina. Uma vez concluída esta tarefa, dirigia-se
para uma das dunas mais altas da praia, onde soprando o seu instrumento, avisava
as gentes das freguesias rurais vizinhas, chamando assim, pescadores e homens
do gado, para que estes se deslocassem para a praia e se desse início à faina.
A buzina andava sempre presa às suas costas.
No decorrer do século
XX surge o “pendão”, ou como pronunciavam os pescadores o “pandão”. Tratava-se
de um aparelho constituído por uma vara de grandes dimensões, aprumada
verticalmente, com uma rede envolvida por um arco de ferro cilíndrico
(camaroeiro) suspenso por uma corda na extremidade mais alta da vara. Quando o
mar estava de feição, o camaroeiro era içado para o alto, para que desta forma
fosse avistado nas freguesias vizinhas pelos homens da faina.
A estrutura de uma
sociedade de pesca não sofreu grandes alterações. A utilização de barcos com
motor reduziu o número de homens de mar e homens de terra, mas e na sua
essência, as funções atribuídas a cada pescador mantem a mesma operacionalidade
do passado. Tomando como exemplo o rol de tripulação de uma Companha
constatamos que a diferenciação entre homens de mar e homens de terra continua
válida. O patrão (armador) e o arrais chefiam uma empresa que agrupa cerca de
doze homens. Atualmente todas as embarcações de pesca em funcionamento entre
Caminha e Espinho pertencem à capitania do Douro, tendo que ostentar no barco a
palavra “Douro”.
De acordo com o Padre
André Lima, a primeira companha que se estabeleceu em Espinho teria vindo do
Furadouro, concelho de Ovar, e era designada por “Ala”. No entanto, não temos
nenhuma documentação que nos permita datar esta empresa de pesca. Companhas com
o nome de “Rei-ao-Mar”, “Trez Anjos”, “Sarampo”, “Cana Verde”, “Bexiga”, “Pucha
Força”, “Velha” ou do “Senhor dos Aflitos”, “D’ Anta” e “Granja” também são
mencionadas por André de Lima. Contudo, o documento mais antigo que conhecemos
com referência à constituição de uma companha, está datado de 5 de Novembro de
1811, e trata-se da escritura de contrato e obrigação da companha São José de
Riba-Mar, chefiada pelo arrais Bernardo de Pinho Branco. Era uma sociedade
constituída por perto de cem pescadores, oriundos de Ovar, os quais, por
motivos profissionais, fixaram residência na costa de Espinho. As companhas
“Velha dos Mossos”, “Nova” e “do Arromba”, todas da freguesia de Anta e que
pescavam na Costa de Espinho, estavam em funcionamento em 1826, como comprovam
algumas fontes primárias sobre as normas de cumprimento da pesca de cerco e
alar para terra. Até ao final da primeira metade do século XIX foram
constituídas muitas companhas que davam trabalho a jovens pescadores, que assim
e ao abrigo da lei de recrutamento militar tinham o privilégio da isenção do
serviço militar obrigatório baseada nos argumentos das dificuldades e perigos
que a faina da pesca acarretava. A nova lei de 27 de Julho de 1851 generalizou
o dever do serviço militar acabando com esse privilégio, facto que contribuiu
para a diminuição e a inscrição do número de companhas, causando também um
impacto emocional muito forte junto das classes piscatórias e da sua relação
com a coroa portuguesa.
“Noutro tempo,
tiravam a rede à mão, e os que dos campos vinham para este dificílimo labor
estavam isentos do serviço militar.” (Miguel de Unamuno, A Pesca de Espinho, Agosto de 1908.)
Ao longo de mais de
dois séculos foram muitas as Companhas que trabalharam e extraíram peixe do mar
de Espinho. A título de exemplo citamos algumas dessas sociedades de pesca. A
maioria dos nomes estão relacionados com a devoção a vários Santos e Padroeiros
para obtenção de proteção e segurança dos pescadores, suas famílias e
embarcações.
Um dos exemplos mais
emblemáticos de uma dessas sociedades de pesca, quer pela sua grandeza em
termos de número de assalariados, quer pela quantidade de capitais que
movimentava, foi a Sociedade de Pesca Costa Verde, Limitada, criada nos anos 50
do século XX, com sede na rua 14 n.º 673. Por escritura pública de 13 de Abril
de 1959, foi admitido como novo sócio, Manuel Moreira dos Santos, subscrevendo
uma quota de 10.000$00, elevando para 110.000$00 o capital da referida
sociedade. No quadro seguinte fica o registo, ainda que incompleto, de algumas
companhas que foram constituídas em Espinho ao longo de mais de dois séculos.
Nos anos 60 e inícios
dos anos 70 do século XX, destacava-se a companha de Alberto de Bastos Maia,
que ficou conhecido como o “Maia dos Camarões”. O negócio da preparação e da
venda dos camarões começou com o seu pai que tinha um armazém na rua 2, entre as
ruas 31 e 33. Posteriormente, Alberto Maia, continuou com o armazém de venda
numa casa situada entre a Av. 8 e a Rua 4. Também o seu irmão Narciso Maia se
dedicou a este comércio. Estamos a falar do famoso camarão da costa, que
poderia ser apanhado na Aguda, em Matosinhos ou em outro local. O nome “camarão
de Espinho” ficou a dever-se não ao local onde era pescado, mas sim ao método
de preparação realizado pela família Maia, que o comercializava em todo o país.
Ainda hoje de norte a sul de Portugal encontramos nos cardápios dos
restaurantes o afamado “camarão de Espinho”.
COMPANHAS DE ARRASTO COSTEIRO EM ESPINHO
|
São José de Ribamar
|
Velha dos Mossos
|
Nova
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Arromba
|
Ala
|
Rei-ao-Mar
|
Trez Anjos
|
Sarampo
|
Canna-Verde
|
Bexiga
|
Pucha Força
|
D´Anta
|
Granja/Moleiros/Almas
|
A Limonada
|
A Cachimbó
|
A Velha
|
Senhor dos Aflitos
|
Folha
|
Saragoça
|
Sabeler
|
Pereira
|
Vinhos
|
De Paramos
|
Benditas Almas
|
Santíssima Trindade
|
Nossa Senhora da Ajuda
|
S. Sebastião
|
Nossa Senhora de Fátima
|
Senhor dos Aflitos 2
|
S. Pedro
|
N. Sra. Rosário de Fátima
|
N. Senhora da Saúde
|
N. Senhora da Conceição
|
Nova Mirense
|
São Paio da Torreira
|
Pesca Susana
|
Pesca de Espinho
|
Senhora dos Aflitos Lda.
|
Do Morgado
|
Aluai
|
Maria
|
Do Jeremias
|
Santa Cecília
|
Senhora da Guia
|
Nossa Senhora do Mar
|
Costa Verde
|
D´Espinho Viva
|
Espinheira
|
São João
|
N. Senhora da Aparecida
|
Vicking e Vicking I
|
De Silvalde
|
Santa Catarina
|
Mar Salomão
|
Coração de Jesus e Maria
|
Dos Arruaça
|
Nova Companha do Sal
|
Nova de São Cristovão
|
Senhor de Matosinhos
|
Fé em Deus
|
N. Senhora da Boa Nova
|
São Torcato
|
Lobo do Mar
|
Santo António
|
Nelson e Sérgio
|
Vamos Andando
|
Mar de Esmoriz
|
Boa União
|
Rita Carolina
|
Nas memórias da pesca
com arte-xávega em Espinho estão as figuras de alguns pescadores, que pela sua
determinação, coragem e sabedoria foram honrados e humildes arrais: Afonso
Arruda, Florêncio Brandão, Fernando Nogueira, Zé Barraca, Zé Torreco e Zé Nucha.
As companhas “A Velha” e “Senhor dos Aflitos”, tiveram como
arrais António de Pinho Branco Miguel. O seu filho, também de nome, António de
Pinho Branco Miguel (1855-1923) foi o primeiro presidente da Junta de Freguesia
de Espinho, instituída em 30 de Dezembro de 1890, depois da criação da Junta de
Paróquia em 23 de Maio de 1889. A família já tinha tradições na gestão das
companhas: o seu avô, Bernardo de Pinho Branco, foi arrais da Companha S. José
de Riba-Mar, e tal como seu pai, começou a vida como arrais na companha a
“Velha”. Pertenceu à comissão fabriqueira da nova Capela de Nossa Senhor da
Ajuda, concluída no ano de 1883 e, também, à Irmandade de Nossa Senhora da
Ajuda (1885), da qual foi o primeiro juiz ou presidente. Já como presidente da
Junta, foi um dos obreiros da construção do cemitério de Espinho e, em 1892,
cedeu os terrenos para a construção do Bairro da Rainha. Após a conclusão do
seu mandato, em 1896, como presidente da Junta de Freguesia de Espinho,
continuou ligado a esta instituição como vogal, tesoureiro e vice-presidente,
mantendo-se na Junta até 1918. Foi, também, um dos obreiros da construção da
atual Igreja Matriz de Espinho.
Uma outra família de arrais muito conhecida pelas gentes
vareiras foi a Sabeler, proprietária de uma antiga companha. De acordo com o
antropologista Agostinho Farinha Isidoro, os “Sabeler”, são descendentes de um
dos arrais que mais se distinguiu na pesca da sardinha em Espinho durante o
século XIX – o Tio Zé Sabeler, designação como era conhecido. A alcunha
“Sabeler”, deriva do facto de não ser analfabeto, como também o não foram os
seus descendentes, facto que, à data”, era pouco vulgar entre pescadores e
outras classes laboriosas. Durante longos anos, foi patrão da companha
“Sabeler”. A destruição progressiva das casas dos pescadores provocada pelas
invasões do mar e o rareamento da sardinha na costa de Espinho, levou ao êxodo
de muitas famílias de pescadores. A dos “Sabeler” fixou-se na Afurada, vindo o
velho Tio Zé Sabeler a morrer, em 16 de Junho de 1884, a bordo de um barco
saveiro, quando entrava na barra do Douro. O seu filho mais velho, José
Ferreira Neto, o “Sabeler”, também natural de Espinho, veio mais tarde a
revolucionar toda a indústria de pesca em Matosinhos ao introduzir o sistema de
pesca conhecido por “cerco americano”. Em Espinho, os sobrinhos de José
Ferreira Neto, Amélio Ferreira Neto e Manuel Ferreira Neto, continuaram no
governo da companha Sabeler.
Armando
Bouçon