quarta-feira, 18 de março de 2020

A Pneumónica e o COVID-19: um século de separação…


Passados que estão mais de 100 anos sobre o efeito devastador provocado por uma epidemia chamada “Pneumónica”, que dizimou 20 milhões de pessoas pelo Mundo fora, e que só em Portugal foi responsável pela Morte de 60 mil pessoas, entre as quais, Amadeo de Souza-Cardoso que viria a sucumbir à doença precisamente em Espinho, eis que estamos novamente, e passados mais de 100 anos, confrontados com nova epidemia à escala mundial.

Neste contexto de emergência social, aqui fica um trabalho de investigação, da autoria de João Céu e Silva publicado no Diário de Notícias a 17 de Março de 2018, sobre aquilo que foi a “Pneumónica”.

Naturalmente, que o contexto histórico, social e civilizacional é outro, mas a verdade é que somos hoje, chamados a tomar parte no controle e contenção do surto de contaminação do COVID-19, nessa medida, é bom recordar, aquilo que os nossos antepassados viveram e sofreram, na certeza  de que, munidos do avanço técnico e civilizacional decorrente de uma distancia temporal superior a um século, temos hoje, obrigação de fazer muito melhor. Devemo-lo a nós próprios, e devemo-lo sobretudo aos nossos antepassados que, esses sim, não tiveram meios de impedir aquilo que foi o efeito catastrófico provocado pela “Pneumónica”. 




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A epidemia que veio de Espanha e matou mais de 60 mil portugueses

De um dia para o outro, em 1918, as pessoas começaram a morrer em Vila Viçosa e o número de mortes não mais parou até atingir muitos milhares em pouco meses. Em três ondas, a pneumónica - também conhecida por gripe espanhola - matou principalmente jovens e não poupou nenhuma classe social em Portugal.
Nossa Senhora de Fátima pode ter escolhido Jacinta e Francisco para testemunharem as suas aparições na Cova da Iria, mas a pneumónica não os poupou poucos meses depois. Nem a uma mão-cheia de artistas que poderiam ter sido famosos em todo o mundo, como o pintor Amadeo de Souza-Cardoso ou o pianista António Fragoso, ambos jovens mas com uma carreira bastante promissora e já com obra feita, que estavam na idade "preferida" para as vítimas do vírus da também chamada gripe espanhola.
Em Portugal o número oficial de vítimas é superior a 60 mil. A doença varreu o país a uma grande velocidade, tanto assim que a falta de caixões para os funerais foi um dos resultados imediatos, o que fazia que muitas famílias os comprassem por antecipação e guardassem debaixo das camas onde os seus membros agonizavam.
A pneumónica apanha o mundo e as autoridades sanitárias desprevenidas, até porque ainda se desconhecia a existência do vírus, e Portugal não escapa ao surto quando no final de maio de 1918 surge o primeiro caso em Vila Viçosa, e rapidamente o contágio se propaga pelo país de sul para norte. Os mortos portugueses são uma ínfima parte dos mais de 20 milhões de vítimas em todo o mundo - embora existam estimativas que apontam para números bem mais altos -, mas é uma quantidade tão impressionante que pode ser considerada a mais alta para uma doença do género em Portugal.

As origens da pneumónica a nível mundial nunca foram exatamente localizadas, havendo várias teorias (ver peça secundária), entre as quais a de ter nascido na Ásia ou ou em cidades europeias como Brest ou Bordéus. Os últimos estudos apontam os Estados Unidos como o local onde surgiram os primeiros casos.
A sua entrada em Portugal deu-se através dos trabalhadores sazonais portugueses que iam para Badajoz e Olivença e que trouxeram a doença para a localidade alentejana de Vila Viçosa, onde no fim de maio ocorre a primeira morte. No dia 4 do mês seguinte é registado outro caso em Leiria, confirmando a fácil propagação em todo o território, pois vai da zona perto da fronteira com Espanha - seguir-se-á Guarda, Castelo Branco, Beja e Évora - para o litoral e chega rapidamente aos grandes centros urbanos de Lisboa e do Porto. Segundo cálculos oficiais, os índices de maior mortalidade verificaram-se em Benavente, onde sete em cada cem pessoas morreram da gripe.

Não existem muitos documentos fotográficos nem notícias sobre a pneumónica em Portugal porque a I Guerra Mundial dominava as atenções

O desconhecimento do vírus que estava na origem da epidemia dificultou o seu combate e o caos político e social que Portugal vivia tornou ainda mais complexa a sua contenção. As notícias que iam surgindo nos jornais eram poucas, até porque se estava em plena Guerra Mundial. No Diário de Notícias de 29 de maio de 1918, o primeiro título era "A Guerra" - que se manteria por muito tempo a abrir a edição - e só na oitava de dez colunas de noticiário é que surgiam ecos da pneumónica: "A epidemia em Espanha", e avisava-se o seguinte: "É provável que em Portugal também venha a sentir-se." Os sintomas das vítimas eram incompreensíveis para a época e questionava-se se seria cólera.

Vila Viçosa sem memória

Apesar da violência da epidemia em Vila Viçosa, quando se percorre esta terra em busca de memórias o que se verifica é a total ausência de lembranças de uma tragédia que está a fazer cem anos. Talvez por uma questão de feitio da população, foi o que garantiu um morador à reportagem do DN, ninguém quer recordar essa época. Na Associação de Apoio ao Idoso ninguém se lembra da pneumónica, nem sequer de ouvir tal palavra... Diga-se que a associação conta com cerca de 300 sócios e na tarde em causa estavam naquele espaço mais de três dezenas das pessoas com mais idade da região. No entanto, vários evocam o ditado "De Espanha nem bom vento nem bom casamento", que nada tem que ver com a doença - refere-se ao vento Suão e aos maus casamentos reais ibéricos - mas que ficou ligado à pneumónica no século passado.
Um dos que recordam o ditado é o senhor Pompílio, de 84 anos, que ao fim de muita insistência lá se recorda de ter ouvido falar da pneumónica: "Pois, morreu muita gente na altura mas não me lembro de mais nada." Após mais alguma insistência, acrescenta: "Foi uma epidemia em que morreu muita gente." E fica-se por aí, tendo o interrogatório cerrado aos restantes resultado pouco, preferem jogar às cartas. Quando se pergunta se a jogatana está boa, um deles responde: "Para o que é está sempre bom." Abel, o responsável da associação, explica que não é só aquilo que os idosos de Vila Viçosa ali fazem, pois há excursões e sardinhadas, tudo à conta dos 50 cêntimos mensais de quota, o mesmo preço de um café nas instalações. Trabalhou nas Finanças locais durante 35 anos e conhece toda a gente, mesmo não sendo nascido em Vila Viçosa. Sugere que se fale com o sócio mais velho, Clemente, de 94 anos. Alguém refere que é um indivíduo com uma "memória fora do normal" e que "sabe dessas histórias todas".

Os bombeiros de Lisboa tinham um veículo para atender às inúmeras vítimas e os militares colaboravam

Antes de se chegar à sua porta, passa-se pelo estabelecimento de José Mariano, 93 anos, que vende jornais. A resposta sobre os efeitos da pneumónica na localidade repete-se. De nada se lembra. Fica-se a conversar e a insistir na pergunta até que se rompe a barreira e recorda que ouviu contar coisas sobre muitas mortes. Há sempre a palavra família envolvida porque a pneumónica não escolhia um mas vários membros do agregado familiar. Talvez essas memórias estejam apagadas porque a sua própria mãe morreu cedo. Com muita insistência, lá interrompe a leitura do Diário de Notícias e relata um pouco da história da sua vida: "Lembro-me de quando a minha mãe morreu, quanto à gripe, não." Depois diz: "Lembro-me da pneumónica, mas lembro-me de outras gripes, como a que matou a minha mãe quando eu tinha 3 anos. Eram dezenas e dezenas a morrer por aí com tuberculoses como ela." E a sua avó nunca lhe contou nada? "Aquilo não se curava, as pessoas morriam todos os dias às duas e às três. Nem havia caixões para tanta gente, as pessoas eram jogadas para a terra", recorda. Continua: "Havia muita pobreza... Eu, antes de ir para a escola, andava com o pé descalço. Fui abandonado muito em pequenino e andei sempre aos tombos, às abas das minhas tias e da minha avó." Indo à questão que a reportagem pretende, volta a insistir--se: e as pessoas tinham medo da pneumónica? "Eram muito atrasadas e a assistência não era como agora, na altura não havia nada. A pessoa estando com uma febre, agasalhava-se e tomava coisas quentes a ver se aquilo passava. Mas não passava."
Está na hora de ir procurar o mais velho de Vila Viçosa, o senhor Clemente. "Pode ser que ele se lembre", remata José Mariano. Também aqui a disponibilidade é pouca e quando entreabre a porta é sempre com vontade de voltar a fechá-la e dar a conversa por terminada: "Não me lembro de nada." Insiste-se e lá vem a mesma lengalenga: "Ouvi pessoas mais velhas contar que morreram muitas pessoas..." Continua sem convicção: "Era o que se ouvia dizer destes tempos. Ó meu amigo, estou muito esquecido."

Pobres responsáveis por epidemia

Já a norte existe mais memória sobre a pneumónica. A investigadora Alexandra Esteves lembra-se de testemunhos da própria avó, que contava como fora grande o flagelo no Alto Minho: "Falava muito da gripe porque ela teve tifo e ligava-a à outra epidemia, muito maior." A investigadora tem em curso um trabalho sobre epidemias nesta região do país por ter encontrado semelhanças entre as de cólera do século XIX e depois a pneumónica no início do século XX: "Os comportamentos dos doentes foram os mesmos e as medidas das autoridades praticamente iguais. O grande problema era o de a população não aceitar a restrição de movimentações, não se respeitarem boas práticas de higiene e existir a ideia de que eram os pobres os responsáveis pela propagação da doença. Aliás, foram sempre eles o bode expiatório na cólera, no tifo, na varíola e na pneumónica, apesar de em qualquer caso a doença entrar tanto no casebre como no palácio."
Na região mais próxima à fronteira espanhola viveu-se o pânico porque, diz, "foi uma gripe que levou muita gente em Melgaço, Monção, Valença e Cerveira, bem como nos concelhos de Paredes de Coura e de Viana do Castelo". Entre as razões que agravavam o alastramento da epidemia estava a assistência hospitalar: "Os hospitais eram para pobres e havia uma grande resistência das outras classes sociais em ingressarem nesse espaço. Queriam ser tratados em casa e ficar junto dos seus familiares, o que ajudava à propagação da doença. Foi mesmo um dos principais motivos para que nesta região a doença se descontrolasse." Acrescenta outra condicionante: "Em 1918, vivia-se um cenário marcado por uma crise política, a falta de bens essenciais e a nível sanitário eram condições terríveis. Faltavam médicos e muitos foram vítimas da doença; faltavam produtos para tratamento e as populações preferiam as mezinhas; havia uma grande desconfiança das populações relativamente ao saber médico; as casas do Minho não eram lugares de grande conforto, na maior parte das vezes um espaço dividido com os animais, sem casas de banho e uma relação preconceituosa com a água. Tudo isso limitava o controlo da doença."

18 meses foi quanto tempo demorou a conter o vírus da pneumónica, que varreu o mundo de março de 1918 a agosto de 1919

Para tornar a situação mais complexa, a propagação era rápida devido a haver nesses meses de verão muita circulação de pessoas por causa do trabalho agrícola em diferentes locais, além da proliferação de festas e romarias: "Eram deslocações que aconteciam muitas vezes para o outro lado da fronteira, onde a doença grassava de forma intensa. Controlar as populações era coisa impossível, pois reagiam mal às determinações das autoridades sanitárias, tendo mesmo existido violência."
Alexandra Esteves escolheu este tema para investigar devido ao seu interesse no estudo do sistema penal em finais do século XVIII e XIX nesta região: "Ao estudar as cadeias estamos a falar em espaços também de morte por serem insalubres e deparei-me com a posição das autoridades face a surtos epidémicos." No caso da cólera não faltam fontes, mas para a pneumónica o que prima é a sua ausência: "Até as notícias nos jornais são poucas porque acontece um silenciamento em torno da doença." Esse silêncio foi uma das razões que a levaram a querer saber o porquê de a maior epidemia da história da humanidade ser tão pouco estudada, tanto em Portugal como no resto da Europa: "Os testemunhos orais são difíceis de encontrar e, por norma, referem uma doença que rapidamente levou muitos jovens. Uma explicação para o silêncio é a colagem à Primeira Guerra Mundial, com mortes mais difíceis de aceitar. Só que esta explicação não convence totalmente porque as principais vítimas são jovens e o falecimento causaria grande comoção social." Por isso tudo, conclui, "falta um grande estudo a nível do território nacional para se perceber o que aconteceu".

Um presidente junto do povo

Quando se questiona se se poderia ter combatido a pneumónica de forma diferente do que aconteceu em Portugal em 1918, a investigadora Helena Rebelo de Andrade, do Instituto Ricardo Jorge, considera que não: "Tendo em conta os conhecimentos da época, fez-se tudo o que era possível. Não se conhecia o vírus e existia uma grande discussão na literatura médica da época sobre a causa da doença. Como a primeira onda teve um carácter mais benigno do que a segunda, que se caracterizou por casos mais graves, com relatos de síndrome de dificuldade respiratória aguda, de pneumonia fulminante com mortes súbitas, muitos duvidaram de que se tratasse apenas de gripe". Dessa forma, eram várias as "opiniões divergentes" quanto às causas e às formas mais eficazes de tratar a doença. "Apesar de todo o arsenal de conhecimento decorrente das descobertas da bacteriologia do final do século XIX, os conhecimentos sobre a gripe eram incipientes. As medidas tomadas para combater a pandemia foram semelhantes às aplicadas para o tifo exantemático e para a peste bubónica, com banhos obrigatórios e a desinfeção de roupas e casas, o isolamento de doentes e dos seus contactos, as vistas domiciliárias e a notificação obrigatória dos epidemiados, com a cidade dividida em áreas sanitárias e a obrigatoriedade de guias sanitárias para os viajantes. Perante a gravidade da segunda onda, tomaram-se muitas medidas para combater a pandemia num curto espaço de tempo, mas no entanto insuficiente perante a rapidez e a violência da epidemia e a enorme carência de recursos."
Quanto ao papel de Ricardo Jorge, Helena Rebelo de Andrade refere-o como importante: "Na qualidade de diretor do Conselho Superior de Higiene e de diretor-geral de Saúde, a Ricardo Jorge deve-se a coordenação do combate à epidemia de gripe em 1918 e 1919, tendo promovido medidas sanitárias que passaram, entre outras, pela informação da população, a organização de serviços sanitários de emergência, a imposição de medidas preventivas. Perante a gravidade da segunda vaga da epidemia, foi--lhe atribuído ainda as funções de comissário-geral extraordinário do governo. Severo crítico do fecho das fronteiras de Espanha, Ricardo Jorge empenhou--se, sob o pseudónimo de Doutor Mirandela, na denúncia, em artigos de opinião, do Muro da China erguido pelos espanhóis, defendendo a ineficácia do cordão sanitário."
A resposta política em 1918 teve ainda uma grande ajuda do presidente Sidónio Pais, atuação que a investigadora confirma: "Ele fez da pneumónica uma bandeira política, viajou pelo país inteiro numa campanha de proximidade com a população numa altura muito conturbada. Éramos um país maioritariamente rural, com sucessivas epidemias e as consequentes crises sanitárias, a viver uma crise política e com a Primeira Guerra Mundial como pano de fundo."
Quanto ao facto de a população jovem ser das mais afetadas, aponta várias razões: "A movimentação das tropas poderá ser uma, pois é uma população jovem ativa e que está junta nos aquartelamentos militares, favorecendo uma taxa de ataque maior, além de que os mais velhos já tinham tido contactos anteriores com gripe que deixaram alguma proteção. Também a má nutrição decorrente da extrema pobreza deixava a população mais vulnerável, contribuindo para propagar a doença e aumentando o número de casos mais graves."

Amadeo e António Fragoso

Se no povo de Vila Viçosa falta memória, já os descendentes de portugueses cuja carreira ficou pelo caminho não se esquecem. É o caso do pianista António Fragoso, que vivia na Pocariça, local onde a pneumónica foi devastadora e atingiu dezenas de famílias. Para o descendente Eduardo Fragoso foi um dos casos mais dramáticos na povoação: "Os meus avós viram partir quatro filhos em cinco dias e o pianista foi o primeiro a morrer." A mãe de Eduardo Fragoso foi a única que se salvou e quis homenagear o irmão divulgando ao máximo a sua obra, tendo conseguido um contrato com a Valentim de Carvalho para editar a obra completa, mesmo que o incêndio do Chiado tivesse provocado a destruição de parte do espólio. Grande parte da obra foi gravada, como a Integral para Canto, Piano e Câmara e várias peças emitidas pela Emissora Nacional. Neste centenário da morte será editada uma biografia atualizada à luz de todas as descobertas mais recentes, como a de ter composto a primeira obra aos 12 anos.
É também o caso do pintor Amadeo de Souza-Cardoso, que há poucos anos teve uma mostra quase integral da sua obra exposta na Fundação Calouste Gulbenkian e mais recentemente no Grand Palais em Paris. O historiador Luís Damásio, casado com uma familiar do pintor, tem estudado a sua vida e vai publicar uma biografia em dois volumes com novos e importantes aspetos, designadamente sobre as condições da própria morte do pintor nascido em Manhufe.
É o caso de uma última carta do pintor dirigida ao irmão António, em que "já descrevia alguns sintomas de mal-estar. Vai ter o cuidado de se prevenir pois Amadeo revelava um pressentimento trágico para o futuro da família". A 25 de outubro, "depois de uma noite de grande aflição, morre em Espinho", conclui o historiador.
A pneumónica não abandonou Portugal antes de ter feito mais de 60 mil vítimas mortais. Após a primeira onda que vai de maio a final de julho, a segunda irá até janeiro do ano seguinte. A terceira onda, que nem todos os países registaram, irá durar até ao verão de 1919. Enquanto isso, a 4 de outubro de 1918, o jornal A Luta publicava a seguinte notícia: "Pode dizer-se que já alastrou por todo o país, e em Lisboa grassa com intensidade. Mandou o governo que não prosseguissem os exames nos liceus e que todos os estabelecimentos de ensino não funcionem até nova ordem. É certo que os teatros e os animatógrafos continuam abertos, e aí a multidão, para efeitos de contágio, é mais perigosa do que nas escolas. Divergem as opiniões quanto à natureza da doença..."

João Céu e Silva
17 Março 2018 — 17:22


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