A GÉNESE DE UMA ESTÂNCIA BALNEAR
O EXEMPLO DA PRAIA DE ESPINHO
O
estar na praia: uma prática social que nasceu em Inglaterra
De um modo geral a época anterior ao
século XVIII desconheceu quase por completo o prazer da vilegiatura marítima,
da praia e do mar, bem como as emoções estéticas, físicas e mentais daí
decorrentes. Aos poucos começou a atribuir-se cada vez mais atenção aos
cuidados com a higiene corporal, em especial ao banho, que passou a ser visto
como factor de saúde e higiene individual e colectiva. A medicina intensificou
a prescrição de tratamentos curativos ou profilácticos de doenças do corpo e do
espírito à base da água do mar, quer por imersão quer por ablução. Assim, a
água deixou de ser vista com carácter de suspeição, como o fora durante quase
toda a Idade Moderna e passou a ser encarada como um agente revigorante e
protector da pele e dos outros órgãos. Como refere o Professor Rui Cascão nas
suas “Notas para a História do Turismo Balnear”, assim se compreende a
importância progressivamente conferida à talassoterapia.
Com o decorrer do século XIX os
habitantes da Europa Ocidental começaram a procurar a praia como local de
veraneio. O gosto pelo mar foi ganhando raízes, e entre finais do século XVIII
e as primeiras décadas do século XIX, período que corresponde aproximadamente
ao Pré-Romantismo e ao Romantismo, a ida a banhos passou a ser sinónimo de uma
prática civilizada entre as elites. A Grã-Bretanha foi o primeiro país a
adoptar esta prática. A aristocracia inglesa, que já tinha incutido entre os
seus pares a vilegiatura termal, criou uma nova forma de lazer, a vilegiatura
marítima, já perfeitamente implantada em finais do século XVIII, e na qual a
praia de Brigthon funcionou como centro difusor deste costume.
Na última década do século XVIII desenvolveram-se centros estivais no litoral da Alemanha, com destaque para
Doberan, Travemünde, Colberg e Kiel (no Mar Báltico), e Nordeney, Wyk e
Helgoland (no Mar do Norte). Em França, o veraneio marítimo começou a dar os
primeiros passos durante o período da Restauração (1815-1830), destacando-se as
estâncias de Biarritz (que mais tarde seria o local privilegiado de veraneio
para a aristocracia francesa, inglesa e castelhana), Dieppe, Boulogne, Royan e
Granville. Nas costas do Mar Mediterrâneo, a difusão da vilegiatura marítima
foi ainda mais tardia. Entre 1830 e 1848, o principal local de veraneio era
Sète. As estâncias de Nice e Cannes só se fazem notar na segunda metade de
Oitocentos, assim como as praias de Montecarlo (Mónaco), Baden Baden
(Alemanha), San Marino (Riviera Italiana), Estoril, Cascais, Granja, Espinho, Figueira
da Foz e Póvoa de Varzim (Portugal), Rio de Janeiro (Brasil) e Mar del Plata
(Agentina), estâncias balneares que se tornaram famosas pela forte componente
lúdica que foram desenvolvendo. A título de exemplo, a cerimónia de inauguração da praia de Dieppe, em 1824, pela duquesa de
Berry, ao meio-dia preciso, e entrando no mar conduzida pelo inspector médico
real das águas, foi um acontecimento de grande simbolismo, que elevou a estadia
à beira-mar à categoria de prática
social
civilizada.
O
papel da Burguesia
Em Portugal a transição do jardim público
para o espaço da praia só aconteceu depois da implantação do liberalismo
(1820). A burguesia liberal foi a responsável pela introdução de novos padrões
de comportamento que a distinguiram dos grupos sociais dominantes do Antigo
Regime, e dois quais salientamos o reforço do papel da família na nova ordem
social e a valorização do ócio e do lazer. Ao dotar as estâncias balneares do
século XIX, de vários espaços sociais, próprios das grandes cidades, a
burguesia fez desses locais, até aí considerados inóspitos, centros
civilizacionais de extrema importância para os vários estratos sociais que se
deslocavam para as praias. Para isso, foi decisivo o desenvolvimento dos
transportes, em especial do caminho-de-ferro, e o papel da publicidade, que se
tornou fundamental para a divulgação das estâncias balneares e das práticas de
talassoterapia, impondo os locais da moda entre as elites, e contribuindo desse
modo para a assimilação dos seus padrões de comportamento por parte dos outros
grupos sociais.
Cosmopolitismo, sociabilidades e
marginalidades em Espinho
A praia de Espinho, de finas
areias e com um relevo marcado por um encadeamento de dunas, era, no primeiro
quartel do século XIX, uma pequena povoação habitada por pescadores oriundos do
Furadouro que para aí foram trabalhar e que acabaram por se fixar junto à
costa, desenvolvendo a tradicional pesca do arrasto ou arte xávega. A partir de
1830 a burguesia dos concelhos limítrofes começou a utilizar o espaço da praia
como local de férias, costume que aos poucos foi transformando a estrutura
habitacional da povoação: aparecimento dos primeiros palheiros de madeira
ricamente ornamentados e das primeiras construções em pedra, por contraste com
os pobres palheiros dos pescadores, num claro sinal de distinção social.
Na
segunda metade do século XIX, e nomeadamente com a abertura da linha do
caminho-de-ferro do Norte, a praia ganhou o estatuto de afamada estância
balnear. O novo meio de transporte alterou por completo o seu quotidiano:
atraiu mais população; fixou novas indústrias e, consequentemente, aumentou os
postos de trabalho; criou novas oportunidades ao nível dos serviços e do
comércio; ligou Espinho aos principais centros populacionais portugueses, e
também à vizinha Espanha; foi um elemento essencial para a mobilidade de
pessoas e bens, designadamente dos vilegiaturistas que todos os anos veraneavam
nesta estância. Em suma, foi um potencial gerador de riqueza.
O
aumento progressivo do número de residentes e de veraneantes, bem como a
introdução de hábitos e costumes próprios de uma cultura urbana, contribuiu de
forma decisiva para o desenvolvimento económico e social da estância balnear.
Neste aspecto, foi de importância capital a passagem a freguesia em 1889, e dez
anos mais tarde a concelho (autonomia administrativa), a definição de uma malha
urbana em quadricula, a expansão da indústria e, principalmente, do comércio e
dos serviços, além da construção de uma rede de infra-estruturas (água,
esgotos, electricidade, telefone, telégrafo, ruas e parques) e de equipamentos
de lazer (teatro, cafés e casinos, cinemas, praça de touros, e espaços
desportivos).
O
interesse pela frequência da praia como uma atitude de distinção social e de
ostentação do novo poder burguês alargou-se aos outros estratos sociais. A
publicidade começou a mostrar às pessoas que o banho de mar era uma prática
civilizacional e, por outro lado, a medicina difundia a ideia da praia
terapêutica e da talassoterapia como cura para vários males. A este facto se
deve a abertura de vários balneários com banhos quentes e frios, de água doce e
salgada, entre 1890 e 1915, o maior dos quais situado na rua 8, no edifício da
antiga sede do S. C. Espinho, comportando 16 quartos para banhos de imersão e 5
quartos para duches. Este balneário
recorria ao serviço de técnicos especializados, nomeadamente de uma enfermeira
diplomada do Hospital da Misericórdia do Porto e do estabelecimento termal de
Vidago.
Espinho, como uma praia abrangente, e ao contrário de praias mais
elitistas, recebia veraneantes das mais variadas origens sociais que se
deslocavam de quase todos os distritos do país. A presença de uma alargada
colónia balnear espanhola, oriunda principalmente da Estremadura e da cidade de
Madrid, dava um toque de cosmopolitismo – a língua de Cervantes ouvia-se em
todos os recantos da estância durante os meses de Julho e Agosto. A praia
também registava uma forte presença de titulares; encontrámos, no decorrer da
nossa investigação, muitos aristocratas que frequentavam em simultâneo as
estâncias balneares de Espinho e da Granja. A participação de algumas destas
famílias na vida social, não se resumia só aos banhos de mar ou às festas. É
nítida a preocupação beneficente em prol dos indigentes. Os capitalistas e
proprietários, juntamente com os magistrados, têm um peso significativo no
cômputo geral dos turistas portugueses que se deslocavam para Espinho. Os
escritores, os músicos e os pintores, que aqui veraneavam, formavam uma elite
intelectual muito própria desta praia, animando a vida cultural, especialmente
as tertúlias e os concertos que decorriam nos cafés mais concorridos. Os
lavradores e os pescadores tinham uma visão da utilização do espaço da praia
diferente dos outros grupos. Os lavradores dirigiam-se para a praia tendo como
única finalidade a terapia marítima. É um grupo que prima por uma presença
discreta que se reflecte nos horários dos banhos e na ausência de contactos
sociais com os outros grupos. As diferenças económicas e culturais contribuíam
de alguma maneira para esse afastamento. Em relação aos pescadores a situação
era diferente. Dependentes exclusivamente do mar, viveram sempre numa luta
constante pela sua sobrevivência. Para o pescador, o espaço da praia funcionava
não como um elemento conducente a práticas consideradas pelos grupos superiores
como civilizadas, mas sim como um meio natural, muitas vezes adverso, que lhe
permitia a sua subsistência diária. A sociabilidade com os outros grupos
manifestava-se, sobretudo, ao nível das práticas religiosas e das actividades
lúdicas de rua. Verificamos porém, que só aqueles que tinham um grau de
instrução mais elevado é que participavam nas actividades culturais.
A componente lúdica e festiva no quotidiano do
veraneante foi, ao longo dos anos, ganhando mais importância. A este facto não
é alheio o grande número de clubes que foram fundados. A vida “mundana” passava
muito por estas instituições particulares. A admissão e presença num clube eram
selectivas e variava de acordo com o estatuto social do cidadão. Assim, a
maioria dos grupos sociais não participava nessas festas e actividades lúdicas.
O pescador, o lavrador, e o operário, quando muito vai a um café, a uma tourada
ou participa nos festejos de carnaval e na batalha de flores. De todos os
divertimentos consideramos a batalha de flores como uma novidade em face das
formas de sociabilidade tradicional. Uma novidade para os residentes e
veraneantes que vão ter uma participação activa nestes festejos, mas também
para centenas de forasteiros que se deslocavam a Espinho atraídos pelo ambiente
colorido de um carnaval fora da época.
O
teatro foi uma das manifestações culturais que teve maior sucesso. A praia de
Espinho fazia parte do roteiro anual das mais importantes companhias
portuguesas de teatro profissional, e também das companhias italianas e
espanholas de zarzuela. O teatro amador começou por estar confinado aos
elementos da elite balnear, estendendo-se aos grupos recreativos que foram os
grandes promotores da cultura popular. O grupo recreativo, ao contrário da
maioria dos clubes, integrava elementos dos estratos sociais mais baixos,
acabando por ser, para muitos cidadãos, o único meio de acesso às práticas
culturais. A sua actividade repartia-se por áreas como o teatro amador, a
música, a dança, a instrução e o desporto. O teatro manteve, ao longo dos anos,
um peso significativo dentro do conjunto das actividades realizadas por estes
grupos. De todos os géneros, o mais representado era a comédia. No entanto,
começa a ganhar importância a temática relacionada com os problemas sociais e
políticos, acompanhando a tendência e gosto naturalistas. O teatro de revista
foi o género mais trabalhado pelos autores locais, e também aquele que obteve
um êxito mais significativo.
A
música era a actividade cultural mais abrangente, fruto da sua descentralização
por vários espaços da praia. Para os mais ricos, o teatro Aliança oferecia um
cartaz onde primavam as companhias de ópera italiana e alguns intérpretes
portugueses de música clássica. A actividade musical dos clubes incluía não só
o tradicional “cotillon”, como também reuniões musicais nas quais participavam
artistas conceituados na área da música clássica portuguesa. Os cafés
apresentavam diariamente saraus musicais de inegável qualidade com a presença
de duetos, quartetos, quintetos e sextetos de categoria internacional. Nos
coretos, as bandas de música tocavam peças do seu repertório, incluindo alguns
temas dedicados à praia Espinho. Eram, por excelência, os locais de mais fácil
acesso à cultura musical. As sociedades musicais, designadamente o Orfeão de
Espinho e o seu principal impulsionador, o Maestro Fausto Neves, com uma vasta
obra repartida por várias especialidades, marcaram durante longos anos a vida
musical espinhense.
As
formas tradicionais de cultura vão ser abaladas com a introdução do cinema.
Espinho tem os primeiros contactos com o animatógrafo, praticamente em
simultâneo com as cidades de Lisboa e do Porto. A adesão ao cinematógrafo foi
maciça, e os vários grupos sociais acorriam às seis salas de cinema fundadas
entre 1896 e 1930. As fitas contempladas reproduzem, sobretudo, o melhor cinema
realizado pelas produtoras francesas “Pathé” e “Gaumont”. O cinema português, a
dar os primeiros passos, não tinha qualquer expressão dentro das salas de
cinema, nem tão pouco podia concorrer com uma produção cada vez mais
industrializada.
A
imprensa local desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento do concelho:
defendeu a autonomia administrativa, denunciou erros políticos e apresentou
soluções para alguns dos graves problemas que afectavam a estância balnear. Foi
importante para a definição e estratégia das várias facções partidárias que
lutavam pelo poder, e como formadora e modeladora da opinião pública. Contudo,
os periódicos espinhenses, com a excepção da Gazeta de Espinho, deixaram-se absorver por esse poder e não
resistiram à queda do regime monárquico. Mas o jornal não foi só utilizado para
fins políticos – para a maioria dos cidadãos era o único meio de informação e
de acesso à notícia, e também um agente de formação intelectual e de dinamização
cultural. Muita da literatura e da poesia que se fazia era consumida através
dos periódicos. Na área dos negócios, nota-se a importância do semanário como
um agente de “marketing” para uma boa parte das indústrias, casas comerciais e
dos espaços públicos de lazer.
Com o decorrer dos anos, o movimento associativo foi
ganhando mais força. Surgiram associações das mais variadas índoles: culturais
e recreativas, religiosas e desportivas, mutualistas e assistenciais, políticas
e patronais. O fenómeno desportivo, como uma das novas formas de sociabilidade
dos finais do século XIX, foi uma prática que adquiriu expressão nesta praia. A
tradição do associativismo foi sobrevivendo às sucessivas gerações e continua
muito activa na vida dos espinhenses.
As
festas religiosas perderam algum terreno em face da expansão da sociabilidade
profana. As procissões do Senhor dos Enfermos, Santíssimo Sacramento e do
Sagrado Coração de Jesus tornaram-se irregulares, até que acabaram por se
extinguir. No entanto, a festa de Nossa Senhora da Ajuda, padroeira da praia,
manteve-se incólume e sem grandes alterações. O mesmo sucede com a Irmandade de
Nossa Senhora da Ajuda que, desde 1885, mantém o culto da Virgem Maria. Por sua
vez, as festividades em honra dos Santos Populares, com excepção do Santo
António que pouco ou quase nenhum significado teve nesta praia, foram
resistindo ao tempo. Podemos, todavia, afirmar, que estas manifestações
populares assumiram sempre um carácter mais profano do que religioso.
O
jogo e a prostituição eram duas práticas sociais consideradas marginais e, por
esse motivo, geradoras de grande polémica. Em face da Lei, o jogo de fortuna ou
azar era proibido pelo Código Penal, no entanto, foi sempre tolerado pelas
autoridades através da ambiguidade do Código Administrativo e só em 1927 é que
foi criado o decreto de lei que regulamentou esta prática. A grande fonte de
rendimento que gerava não permitia ao Estado, nem tão pouco aos municípios, que
dependiam em boa medida dessas receitas para a sua sobrevivência, aplicarem a
tão conturbada Lei. Praias como Espinho, Figueira da Foz e Póvoa de Varzim
devem uma boa parte do seu desenvolvimento a essa prática. Pensamos que um dos
factores que levou ao declínio da Praia da Granja foi precisamente a não
existência de uma tradição de jogo. A prostituição movimentava-se bem neste
ambiente cosmopolita, e a sua prática obedecia ao regulamento de polícia
sanitária do distrito de Aveiro. A prostituta era vista como um mal necessário
que a sociedade devia em simultâneo tolerar e controlar. As prostitutas eram
colocadas em ruas destinadas a esse serviço, afastadas do núcleo habitacional
da freguesia. Era, sobretudo, uma prostituição de quarto de aluguer e de casa
de toleradas.
Armando Bouçon
Armando Bouçon
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